terça-feira, 14 de agosto de 2007

A troca

Evandro Setúbal da Cunha e Silva, advogado.

João, 35; Maria, 16.
O pai de Maria era lavrador, viúvo, tinha treze filhos, sendo sete mulheres e seis homens, todos vingados.
Maria era a mais velha, e “já estava na idade de casar,” – dizia o pai.
Certo dia o roncar de motocicleta assanhou as codornas que bicavam farelo de mandioca no eito da casa do pai de Maria, era João, o vendedor de peças e acessórios de bicicleta. Conversou um instante sobre negócios com o pai de Maria, que parecia indiferente à presença do vendedor.
De súbito, num relance de olhar, Maria caiu de agrado a João, que, percebendo o interesse dela por ele, retribuiu-lhe a atenção com um sorriso maroto.
O pai de Maria viu o lance, mas não se fez notar.
Maria viu em João a porta que se lhe abria para ganhar o mundo e viver feliz.
João, com o mostruário nas mãos, foi até o pai de Maria, a quem sussurrou alguma coisa, que o último, de início, fechou o cenho, balançou a cabeça e, depois de deitar um olhar profundo em Maria, abraçou fortemente o mascate.
Ao cair da tarde, João e Maria já estavam de partida, e o pai de Maria, ladeado pela reca de filhos que choravam sem brotar lágrimas, acompanhou com os olhos - molhados de alegria - o casal sumir na escuridão da chapada, enquanto segurava firme um selim com o símbolo do Flamengo na capa do assento, guarnecido de franjas douradas e, na borda traseira, um pingente de chapéu de cangaceiro.

Evandro Cunha e Silva

terça-feira, 7 de agosto de 2007

· Renascer


Uma droga de vida, adverso,
No vazio do ego apologético,
Fui autor de poemas sem verso,
Espargindo meu interior patético.

Opaca luz ...resplandece de repente -
Ocaso de uma alma aflita:
O langor, e a melancolia renitente
Não mais meu corpo habita.

E eis que por fim a mudança sinto,
Que a natureza tudo faz bem feito,
Enquanto age com razão e instinto.

De volta à vida, e agora satisfeito,
A verdade me consola, e pressinto
Que jamais serei o mesmo sujeito.

Evandro Setúbal da Cunha e Silva.
A vida não é tão bela assim...

Algo de inusitado surge afogando a gente na incerteza de que tudo é culpa de Freud., um sujeito que até hoje chafurda a alma humana.
Acontece que muita gente vê o mundo olhando apenas para o umbigo, e o problema é que ninguém é de ninguém, lutar pelo que é seu é tarefa heróica – o desejado, mas nunca se sabe da intimidade de certos relacionamentos pouco ortodoxos. Um dia, tudo vira de pernas para o alto, e uma nova vida a dois ou mais ressurge de uma situação patética.
O outro, a outra, seja lá o que for, uma mistura exótica que resulta sempre em coisa feia.
Pois é, eles formavam um casal lindo, romântico, doce...Numa manhã de sol forte na praia de Copacabana, receberam no apartamento a visita de um velho amigo do homem. Daí em diante, a névoa do amor envolveu a casa, homem e mulher, mulher e outro, o outro e o homem, os três juntos e unidos numa só carne. Depois a mulher ficou de escanteio. Emburrada, passou a implicar com o outro, que achava graça da ciumeira dela...
E aí, e a bomba espocou, decidiu: era ela ou o outro, este o escolhido, amaram-se perdidamente, indiferentes à presença da mulher, que pensava “Eu mato esse viado”.
Ah, meu santo Cristo, numa noite de luar o outro, entrando de surdina no quarto do casal, flagrou o homem transando com a mulher, e, sem contar conversa, pegou de uma tesoura de costura que se encontrava no criado-mudo, e partiu para o homem, ela interceptou-o, implorando ...
Sabe o que aconteceu, deu tudo errado, vou contar, o outro, enraivecido, passou a agredir a mulher. Fez o que os amantes enciumados quase sempre fazem: matam. Horrível, os mamilos amputados, os grandes lábios trinchados como carne de acém, o anel do ânus recortado e pendurado num pince preso na ponta do nariz da vítima.
Feita a besteira, o assassino, nu, recolhido a um canto do quarto, de cócoras e com os braços em quadro em cima dos joelhos, cabeça baixa comprimindo a base do pescoço. O homem chorava em silêncio, enquanto acariciava os cabelos da mulher e beijava-lhe os lábios lívidos. O outro, depois de levemente levantar a cabeça e vendo o gesto comovido do homem, partiu pra este, de tesoura em punho, mas, antes de aplicar o golpe fatal no amante, hesitou e depois passou a retalhar o próprio corpo, sem escolher lugar, ficou mais perfurado que tábua de pirulito. Irreconhecível.
O homem, com a morte do outro, perdeu o senso e, em seguida, pulou do oitavo andar do prédio, aos gritos de “TODO MUNDO É GAYYYYYYYYYYYYYYYYYYYY...”
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Evandro Setúbal da Cunha e Silva, advogado